Desencontros na cidade dos corpos suados





Imagem gentilmente cedida por
Ana Teresa Vicente, Transtopia, 2020. 

                           
Fotografia de uma montra nas ruas de Berlim




                                                Berlim, 23 de março de 2020.

A desarmonia que paira no ar por estes dias é constrangedora, se por um lado esta cidade vive do amontoar dos corpos por outro é sintomático o reaparecimento do seu comportamento vigilante perante o corpo estranho. De um modo geral parece difícil para estes corpos se desapegarem, por mais que seja conselho imperativo do governo assim fazê-lo. Uma cidade que viveu até há muito pouco tempo entre muros, barreiras e fronteiras.  Uma cidade que aprende da história e que carrega a sua memória, onde todo espaço é um espaço político, atua como lugar de luta para esses mesmos corpos suados. E quando este mesmo espaço desaparece? Quando o local seguro que construímos também ele desaparece? Subitamente retornamos os corpos à sua fragilidade. O seu sentido frágil reside na sua higienização, sendo este também um conceito mais que cientifico também político. Falo disto porque para muitos destes corpos o confinamento poderá gerar sentidos políticos muito perturbadores. Devolver estes corpos às quatro paredes de sua casa é algo que trespassa a segurança, porque seguros eles nunca o foram. Aliás eles conquistaram o seu espaço fora de suas casas e devolvê-los a este estado é profundamente claustrofóbico. Estes corpos são políticos, são queer, são corpoabilitados e periféricos. São aqueles que se capacitaram através da sua resistência. A higienização sempre atravessou toda a história destes corpos, não é algo subitamente novo. Sempre houve a contingência e sempre houve o medo. Posto isto, será que agora todos entenderemos que vivemos num corpo e espaço comum? O medo é o sentimento partilhado no momento e que atravessa todos os nossos corpos.  

Falando através de uma perspetiva pessoal, senti este confinamento como corpo estrangeiro, sair à rua é complexo. Se já sentia um problema de desentendimento linguístico, agora sinto uma certa estranheza acrescida por ser uma estrangeira num espaço que é público, mas desconhecido.

No entanto e após pensar sobre isto sinto que:
Somos todos estrangeiros neste momento.
Nada é da cidade quando ela está deserta. 


Ana Santos


                                                                  


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