(Para) Lá d(n)o ecrã despoleta a Primavera
Sentada à secretária, vou
levantando os olhos do ecrã e olhando para as plantas no parapeito da janela.
As orquídeas estão a crescer saudáveis. A cada dia noto que, numa delas, os
botões que darão flor estão cada vez maiores. A mais recente, que para aqui
veio em flor, já as perde, mas tem novos botões a crescer. Uma não sabe se
morre, se continua a sua jornada. O pé de bambu está vistoso, com novas folhas a
crescerem mesmo dentro do frasco. Decidi que o vou deixar estar. Ele lá sabe o
que está a fazer. De qualquer forma, tem uma bruxa a guardá-lo. As suculentas
estão felizes a crescer. Mas essas, com um pouco de água e um lugar quente,
estão felizes.
Olho para lá destas companheiras,
as testemunhas que há algum tempo me acompanham nas lutas diárias – e que são
as primeiras a se ressentir nos momentos em que estou demasiado fechada em mim
e não as rego o suficiente – mesmo antes do isolamento a que fomos obrigadas/os.
Têm uma companhia recente: um arco-íris que a minha sobrinha pintou e me
ofereceu, com a condição, inquestionável (ai de mim se a questionasse ou
contrariasse) que tem de estar na janela. Porque o quarto da tia tem de ter um arco-íris.
E como contrariar, quando vejo esse gesto carinhoso, sensível e cheio de amor,
sempre que levanto os olhos do ecrã?
Este bairro dos subúrbios está
sossegado. Os vizinhos estão em casa. A rua com carros estacionados como se de
um fim de semana se tratasse. Roupa estendida nos quintais. Ao fundo vejo a Serra
da Arrábida verdejante, o céu azul e limpo sem uma única nuvem à vista. Um
pardal é um ponto negro no ar, e vai aterrar no Freixo que se começa a vestir,
depois do inverno frio. Os melros vão saltando de quintal para quintal, voando
de casa para casa. Os pardais atravessam-se à frente da minha janela, e vão
para os seus ninhos nos arbustos no quintal do vizinho e nos pinheiros do
parque ao lado da casa.
Oiço-os a chilrear felizes.
Juntamente com as rolas e os melros. Às vezes, um corvo decide fazer-se ouvir.
Majestoso como é, não pode ficar para trás. Tal como os periquitos cá da casa.
Esses, fazem-se ouvir bem alto. Estando a rua sossegada, os vários cães que
estão nos quintais da vizinhança estão sossegados, e os gatos a dormir.
Provavelmente aproveitar o calor do sol que brilha, e que neste momento me
entra pela janela e aquece a pele das mãos que escrevem estas palavras. Estas canções são interrompidas pelo som de
uma mota – o carteiro vem entregar o correio, porta a porta. Os vizinhos vão
saindo para o ir buscar. Oiço as vozes a conversar de quintal para
quintal, outros a conversar com o carteiro e a desejar-lhe um bom dia. A playlist
que tenho a tocar junta-se a esta sinfonia, com os acordes de “O Pastor” de
Madredeus.
Se estiver com a janela aberta, o
cheiro a jasmim entra para o quarto e mistura-se com o cheiro do óleo essencial
que tenho a queimar ao pé de mim, e com a réstia de incenso que vai ficando
entranhado nos objetos e têxteis que aqui tenho.
A primavera chegou oficialmente
durante o mês de Março. A roda continuou a girar apesar de estarmos recolhidos
em casa, quando temos possibilidade e meios para o fazer. A sua chegada
implicaria que na altura do equinócio me juntasse às pessoas com quem tenho
trabalhado para um ritual e convívio para celebrar a sua chegada.
A celebração festiva dos ciclos
naturais é uma das dimensões centrais que demarca a vivência do paganismo
contemporâneo. Uma descrição como a que fiz nos parágrafos anteriores, seria
uma descrição que teria feito no meu caderno de campo. Uma descrição do espaço
onde trabalho implica sempre o que vejo, das cores às pessoas, passando pelo
meio ambiente que pode ou não fazer parte do momento; implica descrever os sons
e os cheiros. Implica descrever também o que isso despoleta em mim. Seja em momentos
pré-celebração, durante os ritos ou no pós. Estas dimensões são tão
ricas e importantes na recolha de informação e na reflexão. E para que possa
regressar a esse momento no espaço e tempo sempre que leio as palavras que
nesse dia fluíram (ou nos dias ou semanas seguintes. Nem sempre é possível
escrever sobre no próprio dia) para as páginas do caderno que me acompanha, preciso delas. Existe
uma continuidade entre mim e o terreno e as pessoas, que implica memória, sentidos,
sensações, emoções, sentimentos, vulnerabilidade.
Contudo, continuo a conversar e
acompanhar as pessoas por via virtual. Apesar de não haver uma celebração
física, e realização de um ritual para saudar a primavera, houve mobilização
online de vários grupos e pessoas, em que nas suas casas fizeram essa
celebração, mantiveram o convívio. Fora desses momentos há mobilização,
contacto, novas formas (ou formas reinventadas) de levar a cabo as suas
práticas quebrando barreiras espaciais e físicas. Como todas/os nós estamos a
fazer.
Nas últimas semanas tenho dado
por mim a refletir sobre que transformações este isolamento trará na prática
ritual, mais concretamente. Neste contexto é aquela que torna palpável e
visível a outros a realidade religiosa do paganismo contemporâneo, quando se
considera, principalmente, a dimensão coletiva. Existe uma dimensão estética e corporal
importante na realização de um ritual coletivo. O que é desta corporalidade
transposta para o virtual? A dimensão estética pode ser transmitida de forma
visual, mas e os cheiros? O toque? A vulnerabilidade de todas/os? O que é que
este período que vivemos a nível mundial, pode trazer para os estudos do ritual
e da performance, quando estas práticas são experienciadas através de um meio virtual?
Esta é só uma dimensão que
trabalho, um ponto na complexidade e riqueza deste terreno e nos
questionamentos, contudo, estes momentos permitiam que estivesse fisicamente
com as pessoas sendo uma fonte maravilhosa de reflexões e de sentir no meu
próprio corpo, o que é esta experiência. Estas são apenas questões soltas, no
meio de todas as outras questões que me têm surgido durante este isolamento.
Serão decerto fontes maravilhosas de reflexão, de criatividade, de conhecimento.
Com o tempo, todas estas
angústias e reflexões farão sentido. Até lá, aqui continuo, sentada na secretária
com o calor do sol que entra pela janela aquecer o rosto, com as plantas e tudo
o resto que se passa para lá da janela, acompanhar-me.
A Primavera está aí e a roda vai
girando, sempre, sem parar.
Joana Martins
02 de abril de 2020
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