Luanda em isolamento voluntário por André Castro Soares

Dos dias de isolamento social, diário de campo, de um campo suspenso.
Há doze dias em isolamento social em Luanda. O surto Covid-19 chegou ontem a Luanda com dois casos positivos. Alterou a forma de olhar para esta doença, em parte, pelas experiências terríveis que estão a decorrer em Itália e Espanha. Há duas semanas partiu também uma amiga que deixou o carro dela. Essa situação não faria prever o escalar da situação em Portugal, com a declaração do Estado de Emergência e em Angola com o fecho do espaço aéreo. A decisão do Governo angolana foi atempada, mas não a tempo de evitar infecções. A nossa amiga ficou fechada em Portugal, nós estamos fechados em Angola.
Veremos como conseguem as autoridades lidar com um surto e uma doença que pouco se conhece. Pelos dados que temos espalha-se de forma muito significativa pelas gotículas da boca e pelas mãos circula. Antes do confinamento compramos álcool gel e álcool etílico e sabão capaz de aguentar os primeiros quinze dias. Não se sabe muito mais sobre a forma de transmissão do vírus, mas a sua propagação coloca para já algumas questões filosóficas. O Covid-19 parece ser um ser vivo capaz de se espalhar com os humanos e selecionar os corpos onde habita para se propagar. Ao mesmo tempo que pode ser letal noutros corpos mais débeis e mais frágeis. Parece ter a inteligência de se dissimular durante dias em alguns corpos, ao mesmo tempo que se vai passeando para outros. Invisível e traiçoeiro usa o comportamento social dos humanos para lhes desferir duros golpes. Um vírus que nos veio trazer novas questões sobre a importância de parar, sobre a importância dos contactos sociais, sobre a sociabilidade e a sua poesia. Mas também um vírus que usou os dispositivos do processo de “globalização”, fluxos rápidos de pessoas para travar um sistema que tem esgotado o planeta e os seus recursos naturais. Ironia das ironias ser um pequeno ser com proteínas capaz de parar a humanidade. O meu trabalho de campo em Angola e, sobretudo em Luanda, passava por acompanhar um conjunto de interlocutores como músicos, dançarinos e agentes culturais em redor das conceções do semba enquanto suposto património imaterial. Esse trabalho foi suspenso. Não quero correr riscos e também não vou contribuir para alimentar os caprichos de um vírus que sabe muito bem o que está a fazer. Até há uns dias os luandenses pareciam ter alimentado a ideia de que o Covid-19 não iria chegar, quer seja por causa do calor, quer seja pela especial juventude da população, com imunidades bem constituídas contra doenças muito complicadas que assolam o país: malária, cólera, febre amarela, ébola (contido). A desvalorização desta doença por parte das pessoas decorre também da pouca ou quase nenhuma incidência da gripe A, em 2010, para o qual o país se preparou de forma muito estruturada. Angola tem um sistema de saúde débil e cheio de limitações humanas e técnicas, mas tem experiência de conseguir superar grandes desafios. A malária tem sido uma doença que afeta o país todos os anos. Eu já tive malária e fui infectado em Angola. Fui tratado no Hospital de Gaia. Após alguns dias de internamento o parasita conseguiu colocar-me numa situação de falência respiratória. Na altura a equipa de enfermeiras e médicos decidiram ventilar-me e colocar-me em coma induzido de forma a parar a acção dos parasitas, já em domínio do meu corpo. A confusão gerada pelo vírus do Covid-19 nos nosso pulmões parece, segundo alguns dados, ser idêntica à do Plasmodium Falciperum. Para parar a acção deste parasita é necessário um coctail de medicamentos. Circulam algumas informações de que se estão a fazer as mesmas experiências de ministrar estes medicamentos contra o parasita da malária em doentes com Covid-19. Outra das ironias que este vírus veio expor é que agora a Europa está confrontada com situações de extrema virilidade e doença, hábitos e experiências já bastante vividas em Angola. Não quero com isto dizer que as pessoas têm de passar por isto para fazerem reflexões e aprendizagens, mas sim, revelar que os humanos em qualquer parte do mundo tendem a unir-se para resolver o problema. Muitas vezes até à frente dos governantes. Aquilo que o presidente dos Estados Unidos da América do Norte e do Brasil fizeram é inaceitável e deveria ser julgado não só politicamente como criminalmente. Comportaram-se como pessoas soberbas e cheias de si, com egos capazes de sujeitar os seus povos a momentos de grande sofrimento e à morte.
Para já em Angola só há dois casos. Espero que o calor, se se confirmar isto cientificamente, dê cabo deste “bicho” e retarde o mais possível a sua propagação. Quanto às ironias norte/sul acho que no futuro iremos poder entender melhor se o atraso no caminho da tal “globalização” pode ter sido a salvação de muitas vidas. A forma de vida que sempre ambicionamos e dejamos (do desejo da publicidade e do consumo) parece não ser compatível com a respiração da natureza. Quem apostou nesse binómio natureza/cultura pode estar agora a ter que rever toda a teoria e literatura. Porque parece que este vírus da natureza está para já a impor novas práticas sociais. A vida inteligente/cultural de um vírus que um dia aprendeu como parar os humanos.
22 de março de 2020, Luanda, em isolamento voluntário.

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