Três inquietações: reflexão pós-regresso do Sudão do Sul

Lisboa, 26 de Março de 2020.

O alastramento da pandemia apanhou-me a "meio mergulho" no estranho mundo  do trabalho humanitário; desta vez no Sudão do Sul. 

O mundo já se pressentia em mudança quando parti, no início de Fevereiro. A presença de corpos mascarados em aeroportos e locais turísticos, já fazia adivinhar uma mutação social. Até então, a rotura era experimentada sobretudo por corpos asiáticos, que se esforçavam por manter-se afastados dos corpos "sãos", antecipando a  rejeição que já se tornava comum, em muitos países. 

A máscara ainda era um acessório, quando viajei para o Sudão do Sul. Na minha primeira escala em Roma, a Yves-Saint-Laurent vendia mascaras que combinavam  com as malas de viagem. Atraentes e consumíveis, eram ainda assumidas como qualquer outro objeto: de uso opcional e provavelmente exagerado. Uma histeria global, escalada pelos media. A venda de máscaras cor-de-rosa, a combinar com capas de telemóvel, confirmava a hipótese de que tudo isto era "uma fase". Mas a presença silenciosa de corpos asiáticos, bem cautelosos e protegidos, já inspirava seriedade. Primeira inquietação.

Recordo que na chegada a Juba se encontrava à minha frente um passageiro que vinha da China. Estava visivelmente nervoso, quando passou pelos controlos de temperatura (que na altura se registrava para rastrear o Ebola). Imediatamente avisou o enfermeiro: "Não venho de Wuhan. Venho de uma província muito distante de Wuhan." O enfermeiro riu-se, descontraído, e explicou-lhe que naquele momento estavam mais preocupados com um possível alastramento do Ebola. 

Duas semanas depois estava numa reunião de delegados de saúde em que se colocava a hipótese de retomar o contacto com todos os passageiros oriundos de países afetados pelo COVID-19. O Ebola estava praticamente controlado. Lembrei-me deste senhor. Segunda inquietação.

Quando se faz trabalho humanitário, o mundo "real" vai-se esvanecendo, pouco a pouco, para aceitarmos o inaceitável. Nos espaços políticos, em que se tomam decisões sobre  todo o país, estão sobretudo presentes as agências da ONU. O estado de “emergência” dura há anos, mesmo antes da independência, e foi excluindo com naturalidade a participação da comunidade na determinação do seu futuro. Só o presente imediato importa, ditado pelos fundos disponibilizados pelos grandes "doadores" (Estados Unidos, Suécia, Dinamarca, Reino Unido, Noruega...). Nas entrelinhas de mais uma crise, um guião bem conhecido: cada agência sabe que a prioridade é conseguir "manter-se" no país, justificando a sua necessidade. Esta crise apanhou as agências desprevenidas, no entanto. Desta vez, têm que justificar-se perante os seus próprios trabalhadores. Os expatriados, oriundos de países afetados pelo COVID-19, têm que encontrar um "sentido" para permanecer encerrados num país com um sistema de saúde fragilizado, em que existe ainda risco de violência e de reacendimento de conflitos. Terceira inquietação.

O país encerrou todas fronteiras no dia 23 de Março de 2020 às 0:00h. Eu apanhei o último voo internacional disponível, às 17:20 desse mesmo dia. Agora, à distância e em quarentena, vejo o mundo ao contrário. Recordo com carinho uma colega ugandesa que estava comigo num ultimo voo doméstico, antes da adoção de medidas de prevenção e contenção da mobilidade. Nesse dia havia muito nevoeiro na pista e o piloto não conseguia aterrar. De cada vez que as rodas do avião baixavam e falhavam a pista, todos os passageiros se sobressaltavam, numa uníssona suspensão da respiração. Ela não. Tranquilamente jogava "bolhas" no seu telemóvel. À terceira tentativa falhada, o rapaz que estava sentado ao seu lado tremia de medo. Ela disse-lhe: "Meu querido irmão, sabes que nós não somos eternos? Mais cedo ou mais tarde, vamos ter que partir. Pode ser num avião, num carro, ou a dormir tranquilos na nossa cama. Mas não sabemos. E como não sabemos, não vale a pena ficares tão nervoso. Tranquiliza-te, de uma forma ou de outra, vamos sempre ficar bem. O que tem que acontecer, acontece." 

Fim das inquietações.

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